É irrelevante o tipo de locação, bem de família de fiador é penhorável
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário n. 1.307.334/SP, aprovou a tese proposta pelo relator, Ministro Alexandre de Moraes, no sentido de que: "é constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial".
Com isso, o Supremo confirma a validade da exceção prevista no inciso VII, do art. 3º, da Lei n. 8009/1990, que afasta a impenhorabilidade de bem de família em processo movido "por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação".
Importante contextualizar a decisão em comento.
“Em 2006, no julgamento do RE 407.688/SP, o Tribunal Pleno decidiu que a exceção à impenhorabilidade seria uma forma válida, dentre outras possíveis, de o legislador conformar o direito à moradia à luz da realidade social brasileira, pois estimularia a oferta de imóveis para locação residencial.
Em 2010, no julgamento do RE 612.360/SP, o STF ratificou essa conclusão e, sob a sistemática da repercussão geral (tema 295), fixou a tese de que "é constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no art. 3°, VII, da Lei 8.009/1990 com o direito à moradia consagrado no art. 6° da Constituição Federal, com redação da EC 26/2000", proposta pela relatora, a ministra Ellen Gracie.
Depois disso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovou, em 2015, a súmula 549, com o seguinte teor: "é válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação".
A jurisprudência dos Tribunais Superiores parecia, então, consolidada. Todavia, em 2018, no julgamento do RE 605.709/SP, a 1ª Turma do STF — por maioria — compreendeu que a ratio presente no julgamento dos RE 407.688/SP e RE 612.360/SP não estaria contemplada na hipótese de locação comercial, em que o imóvel arrendado não é utilizado para moradia. Assim, decidiu que a penhora do bem de família do fiador de contrato de locação comercial configuraria uma leitura inconstitucional do inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/1990.
Desse julgamento em diante a jurisprudência do STF cingiu-se: de um lado, decisões entendendo pela penhorabilidade do bem de família, independentemente da finalidade da locação. De outro, decisões afastando a penhora do bem de família do fiador de contrato de locação comercial.
Embora este texto não comporte o debate sobre o acerto da decisão, é possível traçar breves conclusões e antecipar algumas consequências:
1) O fio condutor presente no julgamento do RE 612.360/SP (tema 295) e do RE 1.307.334/SP (tema 1.127) é a deferência à autonomia privada. No entender da Corte, a pactuação da fiança configura disposição legítima de posição subjetiva do direito fundamental à moradia.O fiador consente que seu bem de família seja penhorado pelo locador em caso de inadimplemento do locatário. A propósito, o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto vogal, assinalou que “(...) sob a ótica do princípio da autonomia privada é até mesmo questionável se a conduta de oferecer fiança em contrato de locação sequer tangencie o âmbito de proteção do direito à moradia. Em situações normais, ao prestar fiança em contrato de locação, comercial ou residencial, o particular não elimina uma posição jurídica por si titularizada e que seja protegida pela dimensão negativa do direito à moradia de modo peremptório; antes, exerce sua autonomia privada.”
2) O STF não decidiu que o bem de família do fiador de contrato de locação comercial deverá ser penhorado. A penhora é permitida apenas se ausentes outros meios capazes de assegurar o pagamento do crédito locatício em sede de execução, entendimento presente desde o RE 407.688/SP. Caberá aos juízes, conforme o caso, aplicar o art. 805 do CPC, segundo o qual, “quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado.”
3) Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes evidenciou que na "fiança, em contrato escrito, que não deve deixar margem de dúvidas, o fiador oferece não só o seu bem de família, mas também todo o patrimônio que lhe pertence, em garantia de dívida de terceiro; e o faz de livre e espontânea vontade, no pleno exercício de seu direito de propriedade". Os dois trechos grifados rememoram que a fiança é um pacto adjacente ao contrato de locação regido pelas normas de direito civil. O fiador, assim, tem a seu favor a interpretação restritiva a que alude o artigo 819 do CC e, havendo vício de vontade, a possibilidade de suscitar alguma das causas de anulabilidade do negócio jurídico (artigos 138 a 165 do CC).
4) A decisão poderá ter como consequência o incremento dos deveres informacionais a cargo dos locadores, especialmente a notificação do fiador sobre a falta de pagamento do aluguel. No Tribunal de Justiça de Santa Catarina, inclusive, vige o entendimento de que “incumbe ao credor notificar o fiador a respeito da inadimplência do devedor principal, para que haja a oportunidade de pagamento do débito por aquele que prestou a garantia”.
O problema é que referido dever não existe na Lei do Inquilinato. Quando muito, poderia ser derivado da cláusula geral estabelecida pelo art. 422 do CC, solução que traz consigo o ônus de hipertrofiar [indevidamente] a boa-fé objetiva e, consequentemente, gerar insegurança às relações locatícias, seja pela dúvida quando à existência de um tal dever, seja quanto a definição de seus contornos na prática.
Na Câmara dos Deputados tramitam três PLs nos quais se propõe mudança legislativa nesse sentido. O melhor caminho é aguardar o devido processo legislativo, e não tentar fazer justiça casuisticamente por meio da varinha de condão da boa-fé.
5) A diligência do credor na adoção de medidas de cobrança também poderá receber maior escrutínio dos juízes. No RESp 758.518/PR, por exemplo, o STJ compreendeu que a demora do promitente-vendedor no ajuizamento de ação de reintegração de posse influenciaria na quantificação dos lucros cessantes. Contudo, a mesma crítica tecida quanto aos deveres informacionais se aplica, eis que os direitos do locador decorrem da lei, e não seria certo limitá-los casuisticamente.
Seja como for, a regra do jogo está posta e é clara, como bem pontuou o ministro Alexandre de Moraes: o bem de família do fiador responde em caso de inadimplência de contrato de locação, seja residencial, seja comercial.
Para dirimir a controvérsia, houve a afetação do já citado RE 1.307.334/SP, sob a sistemática da repercussão geral (Tema 1.127), prevalecendo a primeira corrente.
Em síntese, a decisão — com base no voto do ministro relator Alexandre de Moraes — consignou que: i) a técnica legislativa aplicada no inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/1990 não teria diferenciado entre as espécies de locação e retrataria meio constitucional de conformação dos direitos fundamentais ali envolvidos; ii) a fiança seria voluntariamente prestada e representaria exercício legítimo da autonomia privada. Afastar a penhora, esvaziando a fiança, configuraria indevida restrição do direito de propriedade e da liberdade contratual; iii) o ato de afiançar o contrato e, depois, invocar a impenhorabilidade para evitar o cumprimento das obrigações do fiador ofenderia a boa-fé objetiva; e iv) à luz de dados estatísticos, obstar a penhora do bem de família do fiador resultaria em desestímulo à livre iniciativa e ao empreendedorismo. Isso porque se constatou que, particularmente nas micro e pequenas empresas, o fiador é, usualmente, o próprio sócio da pessoa jurídica”.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2022-mar-28/finalidade-locacao-nao-importa-bem-familia-fiador-penhoravel